As consequências poéticas do BTS

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As consequências poéticas do BTS

Uma vez, como prefácio do meu poema “Bell Theory”, eu contei ao público em tom de piada que eu tinha sido provocada pelo meu inglês quando eu era mais nova, quando não estava na moda ser coreano, ou melhor, antes da boyband BTS ter feito ser coreano algo legal. Algumas pessoas riram e sorriram seja por desconforto ou por bondade, e eu me encontrei com vontade de chorar enquanto eu lia o poema sobre o meu inglês atrapalhado, colonizado por coreanos, e as consequências cruéis das falhas na minha língua. Eu nunca tinha ficado emocionada durante uma leitura antes. Eu tentei controlar o tremor na minha voz e dedos. Se alguém notou, não disse nada, seja por desconforto ou por bondade.

Eu me mudei para Victoria, no Canadá de Busan, na Coreia do Sul, aos meus tímidos 11 anos de idade. Eu só sabia como dizer “Estou bem, obrigada, e você?” quando alguém me perguntava como eu estava. Minha irmã mais velha e minha mãe, que teve que sair do seu emprego para vir com a gente, só sabia a mesma frase. Tem uma piada que se um coreano é atropelado, ou se machuca, e um nativo de inglês exclama “Ai meu Deus, você está bem?” o coreano vai automaticamente dizer “Eu estou bem, obrigado, e você?”. Então por um tempo, era o que nós sempre estávamos, para todo mundo: bem.

O meu pai ficou em Busan para continuar produzindo renda para a nossa família. De certa maneira, parecia que todos nós tínhamos sacrificado alguma coisa, até mesmo eu, que não entendia o porquê de termos saído de lá. No entanto, não há como negar que nós fomos extremamente privilegiados. Nós três nos mudamos para o Canadá porque os meus pais queriam que a minha irmã e eu fossemos educadas em um sistema livre da intensa pressão e competição infame que os estudantes coreanos são submetidos. Eles queriam que tivéssemos mais facilidade e menos pressão para correr atrás dos nossos sonhos, sejam eles quais eles se tornassem.

A nossa linguagem, entretanto, nos marcou imediatamente como estranhas, e até mesmo burras ou desinteressantes. Nós éramos estranhas porque as pessoas conseguiam perceber que éramos estrangeiras. Nós éramos burras porque não conseguíamos nos expressar completamente — isso irritava a minha mãe, que não se importava que as pessoas a tratassem como estrangeira, mas ficava frustrada por não conseguir fazer tarefas mundanas com total clareza e comando. Nós éramos desinteressantes porque, quase sempre, éramos perguntadas se éramos chineses ou japoneses. “Coreanas”, nós respondíamos, e pessoas (brancas) diziam “Ah” ou acenavam desapontadas e paravam de falar. Mesmo se fossemos chinesas ou japonesas, eu não acredito que qualquer conversa que seguisse teria sido particularmente mais iluminada.

Mas eu queria ser vista. Eu teria ficado extremamente entusiasmada se alguém mencionasse que comeu kimchi. Eu teria dito “Sim!”, com toda a ansiedade que eu pudesse reunir, porque eu não sabia como falar nada além daquilo. Infelizmente, eu queria que a minha identidade fosse uma informação digerível, usada para me categorizar para que as pessoas brancas não precisassem aprender quem eu era além de um estereótipo. Porque sem até mesmo isso, eu não existia.

Pela virtude de ser muito jovem, contudo, eu aprendi inglês rapidamente; em alguns meses, eu tinha aprendido a compreender e comunicar quase tudo. Se alguém me perguntasse como eu estava, eu poderia estar mais do que bem, ou nada bem, e eu podia explicar o motivo. Porém ser capaz de conversar com as pessoas significou que elas podiam me perguntar se eu podia falar ou ler para eles em chinês ou japonês. O desapontamento nos olhos delas permaneceu. Ninguém estava interessado em uma coreana. O fato de que eu não sabia as linguagens hegemônicas daqueles países que tinham invadido o meu inúmeras vezes me fez sentir impotente, ressentida, e honestamente, com inveja.

No começo dos anos 2000, o K-Pop e o K-Drama começaram a ganhar popularidade na China e no Japão (o fenômeno chamado de Hallyu, “onda coreana”) e as pessoas mais atraentes e famosas da Coreia começaram a ganhar fãs em outros países asiáticos. Ao final dos anos 2000, certamente pareceu, pelo menos na internet, que muitos não-coreanos gostaram de música e TV coreana. Embora alguns amigos canadenses chineses tenham me dito que seus pais amavam o drama “Dae Jang Geum”, eu não senti nenhum aumento na consciência das pessoas fora da comunidade asiática de onde ou o que a Coreia era. Nessa altura, eu também já era fluente em inglês, tanto que eu conseguia enganar os nativos a pensarem que eu tinha nascido no Canadá. Eu fiquei presunçosa ao perceber que eu não era apenas capaz de me comunicar, mas também habilidosa em argumentar e escrever. Eu fui a primeira da minha sala em inglês desde a oitava série. Ainda assim, eu pronunciava algumas coisas incorretamente, e outras pessoas apontavam isso, porque era engraçado. Aparentemente, eu continuava pronunciando “elevador” como “elivador”. Eu não podia sequer exclamar “Que merda!” corretamente — Eu falava como se fosse uma palavra só, como “quemerda”. Eu não conseguia deixar passar o fato de que eu secretamente não era “daqui”, que eu não pertencia. Que merda, que merda, que merda, eu murmurava, tentando fazer as sílabas se separarem. Quemerda, quemerda, quemerda. Apesar de todos os meus esforços, apesar de ser jovem, eu possuía uma barragem que restringia a minha língua.

Na escrita, entretanto, minha linguagem podia ser perfeita. Nas páginas, ninguém podia me escutar. Talvez tenha sido por isso que eu me tornei poeta — talvez eu ansiasse por um espaço onde eu poderia não falhar, ou melhor, onde era permitido falhar. A poesia como um meio entrega respostas afetivas de maneiras que a tradicional prosa narrativa não faz. Costumes de gramática, sintaxe, e lógica podem ser manchados sem explicações ou desculpas, e há uma beleza no caos e na névoa. Na poesia, eu me dei conta de novo e de novo que “falhas” são de fato aberturas para mais possibilidades.

Embora eu tenha escrito minha poesia em inglês, parecia uma celebração da minha linguagem e identidade coreana. Ser coreana e falar coreano me ajudou a compreender, observar, e talvez sentir mais — pois existem expressões e conceitos que existem em coreano mas não existem em inglês (e, obviamente, vice-e-versa). Por exemplo, iseulbi, boseulbi, e garangbi são palavras comuns que traduzem para “chuvisco” em inglês (bi significa chuva). Iseulbi, uma palavra composta de “orvalho” e “chuva”, significa chuva fina, com cerração. Boseulbi significa riscos finos e soltos de chuva em um dia sem vento. Garangbi também significa chuva fina, porém com pingos mais grossos que os outros dois tipos, o suficiente para te encharcar. Existe um provérbio coreano que diz, “Uma pessoa não nota as roupas ficando molhadas com garangbi”, que significa que até um problema trivial pode se tornar uma situação maior. Existem distinções sutis que muitos coreanos talvez também não saibam, mas escritores com certeza seriam cuidadosos ao escolher entre essas palavras, e saber todos os três tipos me equipam com mais precisão descritiva e sensibilidade ao escrever meus próprios poemas em inglês. Cada dia chuvoso é diferente. Cada tipo de chuva pinta um tipo diferente de dia. Existe um poeta que não se deleite nessas sutilezas? Dessa forma, a minha percepção é o meu inglês, e a minha linguagem poética é rica com coreano.

Então eu passei a amar e viver na poesia. Era um lar seguro e acolhedor para a minha língua “imperfeita”. Minha vergonha diminuiu, e agora eu acredito que aqueles que julgam os outros pela sua fala são aqueles que precisam interrogar sua própria crença de que a linguagem é uma medida de pertencimento ou inteligência. Ainda assim eu me encontro fascinada pela posição que o K-Pop se encontra em países fora da Coreia. Quando eu estava crescendo, eu não poderia imaginar que o K-Pop seria popular na imprensa da América do Norte ou da Europa. Eu entendia a história e a existência do racismo e do nacionalismo linguístico. Todos os ásio-americanos (especialmente os asiáticos não orientais) não têm representação na mídia ocidental. Mas o grupo coreano BTS se tornou popular o suficiente para aparecer em programas como Good Morning America e The Tonight Show Starring Jimmy Fallon, e eu estou tentando entender o porquê.

Sim, é claro, os MVs de K-Pop tem uma fotografia linda e histórias intrigantes, coreografias deslumbrantes, roupas descoladas, visuais audaciosos, músicas cativantes, e performances de gênero que podem ser refrescantes e esperançosas para o público americano, junto com aquele estereótipo de maneirismos infantis e cafonas que são de cunho coreano e etc. A minha questão é, esses aspectos do BTS e do K-Pop no geral, são tão engajadores que os fãs fora da Coreia conseguem gostar deles apesar do fato de suas músicas serem em coreano? Ou a estranheza da linguagem faz parte da atração?

Eu não sou expert em musicologia, mídia popular contemporânea, ou fenômenos transculturais. Também há muita crítica na indústria do K-Pop, o sistema de “idols”, as músicas, e os interesses orientalistas. O BTS, por exemplo, embora sejam um grupo de um país que nunca foi uma potência colonial, estabeleceram seus ARMYs (o nome do seu fandom) ao redor do mundo. BTS significa Bangtan Sonyeondan, traduzindo para “escoteiros a prova de balas”, e ARMY (exército) significa Adorable Representative MC for Youth, traduzindo para “Adoráveis Representantes da Juventude”, mas foi feita uma engenharia reversa para explicar o acrônimo. Se o BTS fosse à prova de balas, então é claro que eles teriam um exército. Isso levanta questões difíceis sobre as expectativas da masculinidade e a presença do militarismo na Coreia.

Ainda assim, quando eu vejo o BTS cantando em coreano na televisão americana, ou quando eu vejo seus fãs americanos — muitos deles sendo pessoas de cor, eu notei — cantando junto com suas letras coreanas, eu sinto carinho por todos eles, e pela minha “eu” mais nova. Eu quero acreditar que a geração mais nova aprecia a beleza no caos e a névoa da tradução, que eles se deleitam em extrair significados dos sons e talvez apenas se derretam com a melodia. Eu quero acreditar que apesar deles se sentirem desapontados pela tradução não conseguir transmitir tudo, eles também fiquem animados pelo potencial que essas lacunas apresentam. Que eles, por sua vez, se envolvam com tradução, com imaginação e criatividade. Que eles encontrem a poesia nesse processo. Que eles encontrem felicidade nos sons de uma pequena península cuja língua certa vez foi roubada.

Novamente, existe muito sobre o BTS e o K-Pop que se presta ao cinismo. Eu sei disso. Mas me deixe ter isso. Me permita ter esse momento. Eu consigo ver o meu rosto mais novo iluminando dentre uma multidão de fãs, cercada de amigos, gritando a minha língua, não se importando com a sua pronúncia imperfeita do coreano ou com a minha do inglês — e sim amando e celebrando a expansão das línguas e as possíveis consequências poéticas. Me deixe me apoiar nessa ternura.

Fonte: Emily Jungmin Yoon @ The Paris Review

Artigos | por em 24/03/2019
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