A arte dos MVs coreanos

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A arte dos MVs coreanos

K-Pop sempre foi associado à visuais memoráveis, mas agora a percepção evoluiu para complexa e criativa ao invés de apenas excêntrica e escandalosa, cortesia da artisticidade da sensação global atual, BTS.

Quando as pessoas descobrem que eu sou fã de pop coreano é inevitável que me perguntem, “Mas como você entende o que eles estão dizendo?”. Há uma confusão imediata na cabeça delas de como é possível se conectar com artistas que se apresentam numa língua que não seja o inglês. Quando respondo à elas que não necessariamente preciso saber a letra para entender a mensagem do artista sou recebida por alguns olhares incrédulos ou risadas, ou ambos. A outra pergunta é quase sempre sobre se é a beleza ‘exótica’ que me atrai! Se você não é um fã de pop coreano, talvez você já tenha experimentado isso também.

Para ficar mais fácil de entender, acho importante retroceder bastante dessa narrativa: filmes mudos. Nascidos diretamente da fotografia, o cinema mudo perdurou por décadas sem áudio e língua e mesmo assim as mensagens eram transmitidas e o público entretido. Quer tenham sido pistas escondidas dentro de cenas para transmitir um mistério ou uma piada na comédia simples,  cada filme gerava uma emoção, reação e discussão sem depender do diálogo. Eu acredito que a analogia com o cinema mudo um bom jeito de entender a indústria musical coreana, onde os vídeos e elementos visuais algumas vezes expressam mais que palavras.

Primeiramente, Moda

Vestido em um terno listrado com estampa de estrelas, cabelo longuíssimo ruivo raspado na lateral e olhos delineados, G-Dragon se mostrou confiante, andrógino e poderoso no MV de “Fantastic Baby” de 2012.

Todo fã tem um artista específico que o introduziu no cintilante mundo do K-Pop. Para mim, foi o grupo veterano Big Bang com a música de 2012 “Fantastic Baby”. O escandaloso vídeo-clipe distópico destacou-se de tudo que eu já tinha visto e a cena de abertura com o líder do grupo, G-Dragon, sentado num trono me causou um particular e poderoso impacto. Vestido em um terno listrado com estampa de estrelas, cabelo alaranjado extremamente longo e olhos delineados, ele parecia confiante, andrógino e poderoso – sem mencionar a completa oposição da ideia social do que um homem não deve ser. O grupo inteiro com cabelos neons combinando e com estética cyberpunk, criou choque e admiração em medidas iguais.

O grupo de mesma empresa de Big Bang, 2NE1 teve um efeito parecido comigo com “I Am The Best”, um hino glamuroso cromado em prata e empoderamento feminino. Usando correntes, látex e estilo urbano de alta-costura, o quarteto feminino quebrou tudo ao redor com vigor, dirigindo carros caros e apresentando coreografia poderosa em cima de salto-alto – elas equilibraram sex appel e poder feminino como instrumentos para contar algo, ao invés de apenas excitar o público.

A moda sempre foi o sustentáculo pelo qual os MVs coreanos optaram para construir seu universo ao redor. De volta ao tempo dos originadores do K-Pop, Seo Taiji & Boys incorporaram o estilo de rua norte-americano e hip-hop com as calças largas dos anos 90. Isso deu aos fãs coreanos um gostinho da cultura ocidental e por outro lado, tornou os artistas coreanos mais acessíveis ao público ocidental. Quanto mais idols eram lançados, eles começaram a combinar com cuidado seus figurinos que refletiam as tendências de cada época. Logo, os videoclipes começaram a experimentar com conceitos  e temas completos. “Chained Up” do grupo masculino VIXX é sensualmente memorável, assim como o revival dos anos 60 proporcionado por Wonder Girls em “Nobody” de 2007.

 

O revival dos anos 60 de Wonder Girls em “Nobody”, 2007.

É apenas natural agora que grandes nomes da moda colaborem com essas estrelas da nova geração; a maioria dos artistas coreanos atualmente optam pela estilo urbano de grife combinando com looks saídos diretamente das passarelas, geralmente cruzando as fronteiras ocidentais com roupas uma estação adiantadas. O quarteto feminino BLACKPINK é um exemplo elogiado pelo estilo urbano em suas apresentações ao vivo e MVs.

 

Referências à arte e cultura pop

Cena de “Singularity” à esquerda incorpora uma alusão à famosa pintura de ‘Ophelia’ de John Everett Millais (e consequentemente, ‘Hamlet’ de William Shakespeare”), ‘O retrato de Dorian Gray’ do inglês Oscar Wilde e o mito grego de Narciso.

Com o passar do tempo e do início da dominação global do K-Pop, os figurinos e estilo dos artistas nos videoclipes se tornaram apenas a ponto do iceberg. Os diretores e artistas procuravam agora incorporar metáforas visuais em seus filmes.

“Em termos de simbolismo, o primeiro vídeo que vem à minha mente é ‘Doom Dada’ de T.O.P”, diz Ruchi Sawardekar (diretor de filmes e ardente fã do gênero). “A quantidade de referências visuais ao cinema e arte pós-moderna – foi um prazer para meus olhos de nerd e cinéfilo.”  

O MV lançado em 2013 demonstra o entendimento sagaz de história da arte e cultura pop de T.O.P. “Doom Dada” por si só já se refere ao movimento do Dadaísmo, que rejeita a lógica e utiliza a irracionalidade e absurdidade para criticar à sociedade. O vídeoclipe ainda carrega referência à diversos filmes aclamados pela crítica, incluindo “2001: Uma Odisséia no Espaço”, “A Bruxa de Blair” e muitos outros.

Há uma sequência com T.O.P dentro de um zootrópio, o perpetuador do cinema, com imagens de esqueletos correndo ao redor dele. Em uma entrevista à Fuse em 2014, T.O.P disse, “Eu queria criar um vídeo único que parecesse como um filme cult com alguns elementos divertidos, um vídeo com uma mensagem.” O vídeo inteiro é uma reflexão sobre a arte ser um caminho para a rebelião.

“É um paraíso para estudantes de literatura, realmente,” diz Meghna, pós-graduada em literatura inglesa em referência à “I Need U”, “Prologue” e “Run”, que fazem parte da série The Most Beautiful Moment In Life do BTS. Meghna é uma das fãs mais famosas por suas teorias divulgadas no Twitter (onde é conhecida como @Kookminvasion) e ganhou reconhecimento graças a sua análise cena por cena de MVs de K-Pop. Ela revela que foi The Most Beautiful Moment In Life que motivou esse hobby inicialmente. Com esses vídeos, o BTS deu início aos três anos de saga de seu universo fictício.

Cada integrante representou diversas dificuldades enfrentadas pelos jovens na sociedade atual, como vício em drogas, abuso, suicídio e assassinato e como as amizades podem ser uma válvula de escape dessas realidades. De longe, é uma das narrativas mais atraentes já existentes no K-Pop, quebrando diversos estereótipos, normas culturais e barreiras de linguagem para alcançar  notável apelo universal. “Esses três vídeos sozinhos geraram tantas teorias e possibilidades em todo o fandom que é inacreditável que eles tenham feito tudo isso em… que, 25 minutos de vídeo?”

Com seu álbum de 2016, Wings, eles levaram a mitologia ainda mais longe e começaram a explorar os limites da vida e morte, universos paralelos, literatura, mitologia e simbolismo religioso em seu trabalho. Muitos vídeos desde então possuem referências à literatura, arte e cultura pop que são reconhecidas pelas pessoas ao redor do planeta. “Eu acho que cada vídeo do BTS é explêndido por si só, pois as vezes uma cena só tem cinco elementos diferentes que eu preciso analisar, e alguns deles são impossíveis de se explicar em uma simples postagem no Twitter exatamente pelo extenso contexto que há por trás,” explica Meghna.

Livros como “Demian” de Hermann Hesse, “Aqueles que se afastam de Omelas” de Ursula K. Le Guin e “O pequeno príncipe” de Antoine Saint-Exupéry são as principais fontes de inspiração para o enredo construído pelo BTS, enquanto muitos outros moram escondidos entre as cenas. O vídeo para o recente comeback do grupo, “Singularity” é particularmente chamativo – ele incorpora alusões à pintura ‘Ophelia’ de Sir John Everett Millais, ao clássico de Oscar Wilde “O retrato de Dorian Gray” e o mito grego de Narciso.

Muitos fãs buscam por eles mesmos a leitura de todos esses conteúdos literários para entender a narrativa e acompanhar a atenção aos detalhes que o grupo mostra. Em uma entrevista com a Rolling Stone India em 2017, o líder do septeto, RM, falou sobre como a história deles é interligada: “Star Wars foi lançado há décadas, mas hoje pai e filho ainda vão ao cinema para assistir. Não é apenas algo de cinco ou dez anos, você me entende? Então nossa empresa entendeu isso e sempre reforçou a importância de construir um universo como o de Star Wars ou Marvel.”

 

Metáforas meticulosas e piadas visuais

Além de amplificar a letra de uma música, simbolismos visuais também servem como um substituto para ela. “Coup D’etat’ de G-Dragon é um ótimo exemplo”, aponta Sawardekar. “É uma música auto-expressiva que ficou ainda mais poderosa com seu vídeo. Ele consegue falar de sua experiência como artista em relação a liberdade criativa, sobre lidar com a constante crítica e ter dificuldades com sua própria identidade artística até para alguém que não entende a letra.”

Em “Coup D’etat” o ‘rei do K-Pop’ mergulha em sua própria psique para dar início a uma revolução interna. Ele precisa matar uma parte de si mesmo para nascer mais forte e criar uma nova narrativa. O MV é repleto de metáforas sobre autodestruição, capitalismo, relacionamentos tóxicos e as armadilhas da indústria de entretenimento. Ele também é autodepreciativo quando utiliza Easter eggs de músicas antigas de sua própria autoria para zombar de sua própria frivolidade. Simbolismo, piadas visuais e Easter eggs inteligentes se tornaram uma marca do trabalho de G-Dragon.

Todos concordamos em algo entretanto: VIXX são os líderes nesse jogo. O sexteto masculino construiu uma reputação como os ‘bonecos dos conceitos’ no K-Pop, fazendo uso de diversos enredos, alusões à literatura e mitologia desde seu vídeo com temática vampírica de 2013 para a música “On and On”. “Eu não acho que eles vão abrir mão de tal título,” diz Meghna. “Eles provavelmente são recordistas em quantidade de enredos já trabalhados.” Ela aponta “Fantasy” em particular, o single dark e sensual de 2016. “Eu tive que me sentar e tirar prints de diversas cenas para entender melhor,” ela relembra. O single faz parte da trilogia conceitualizada e nomeada à três diferentes deuses da mitologia grega: Zeus, Hades e Kratos. Os vídeos de cada single dos míni-álbuns da trilogia refinaram o simbolismo que conectava os integrantes naquela mitologia. “Esse foi um dos muitos momentos chocantes, eu acho, quando percebi que um dos integrantes representava Hades e o outro Perséfone, sua esposa.”

Simbolismo não é restrito apenas ao mundo K-Pop, porém, é uma arte que a maioria dos artistas coreanos botam fé. O cantor R&B Dean tirou inspiração da cultura norte-americana e história para contar suas próprias. Seu vídeo de 2016 de “Bonnie and Clyde” reconta a trágica história do infâme casal homônimo, desta vez num cenário por volta dos anos 80. Seu mais recente trabalho, “Instagram” é um vídeo de apenas uma tomada que utiliza trechos de importantes momentos e figuras históricas projetadas ao seu redor para criticar o desespero moderno das mídias sociais.

Os artistas coreanos frequentemente escolhem não explicar o significado de seus vídeos, permitindo à audiência liberdade para criar sua própria interpretação do trabalho – isso permite que se crie inevitavelmente um vínculo único entre artista e público que são livres para absorver o que é preciso de cada narrativa para os entreter.

 

Todos os movimentos certos

Não há como negar que visuais com coreografias impecáveis as vezes podem ter um impacto ainda maior. “Eu entrei para o K-Pop logo após assistir ‘Lucifer’ de SHINee em 2013, naquele tempo foi realmente a música e a coreografia que me atraíram para o gênero.” Sawardekar relembra. De fato, muitos fãs mais antigos apontam o quinteto masculino como seu primeiro encontro com o K-Pop.

Sawardekar admite que “Lucifer” é um tanto formuláica, mas desde lá a evolução criativa foi meteórica. “Ver grupos dançando em cenários fechados para agora combinar isso à narrativas complexas é bem impressionante. Em 2013-2014 percebi que muitos grupos tentavam ser inovativos e diferentes mesmo com suas típicas coreografias muito trabalhadas. ‘Growl’ do EXO é um bom exemplo.” Ela explica que “Growl” foca na coreografia com um cenário minimalista e uma câmera em take único que se movimenta durante o vídeo. “Save Me” do BTS e “Be Natural” de Red Velvet possuem técnicas visuais semelhantes.

Grupos maiores como Seventeen, com seus treze integrantes e NCT, com dezoito, dependem mais do visual rápido, complexo e preciso de seus passos de dança. Tidos como os reis da sincronia, Seventeen é responsável pela maioria de suas próprias coreografias e utilizam sua quantidade em próprio favor. Por exemplo, seu MV de 2017 para o single “Don’t Wanna Cry” contém cenas aéreas que mostram as formações impecáveis que o grupo utiliza.

Muitos artistas também incluem vídeos próprios para mostrar a coreografia – performance versions – o maknae do SHINee, Taemin, é conhecido por ser um dos melhores dançarinos da indústria e possui a tendência de preferir esse específico formato de MV (como visto em “Drip Drop”, “Press Your Number” e “Move”), para favorecer onde ele é mais forte.

Há também o aspecto ‘chave’ da coreografia, que se refere ao movimento que os fãs amam aprender e seguir ou uma parte específica da coreografia que a resume de maneira visualmente atraente. O viral de PSY, “Gangman Style” é um exemplo desse aspecto, onde o mundo todo aparentemente aprendeu a copiar os movimentos do produtor e artista veterano.

O futuro em cena

O grupo feminino LOONA utiliza múltiplas realidades, possível relacionamento homoafetivo e referências bíblicas em seus vídeos. Aqui, uma cena da música “Egoist”.

O K-Pop sempre foi associado à visuais memoráveis, mas agora a percepção evoluiu para complexa e criativa ao invés de ‘excêntrica’ e ‘exagerada’, cortesia da artisticidade do BTS. “O engajamento de um fã de K-Pop com a música e cultura é na maioria das vezes através dos MVS.”, diz Sawardekar. “Levando isso em consideração, é compreensível que os fãs criem expectativas nos MVs de seus artistas favoritos. Especialmente também porque a indústria está se tornando saturada de novos artistas, e mais músicas e consequentemente novos vídeos. O público está constantemente procurando por algo novo e interessante.”

A competição para lançar o melhor trabalho é intensa e grupos mais novos estão carregando a tocha com sucesso; as séries de vídeos do Monsta X que explora viagem no tempo, rebelião e reformas sociais é um exemplo, assim como o grupo de 12 integrantes, LOONA, que explora realidades múltiplas, possível relacionamento homoafetivo e referências bíblicas.

Meghna explica que os enredos e simbolismos nos MVs coreanos também desafiaram as atitudes desdenhosas que o público pode ter em relação à artistas asiáticos e/ou não falantes de inglês. “Isso alimenta discussões entre fãs que amam esses grupos e que querem saber o que exatamente aconteceu – ou o que pode vir a acontecer no futuro,” diz ela. Especulações online mantém o fandom em sincronia enquanto os fãs se juntam para conversar sobre teorias. Amizades são instantaneamente formadas quando fãs engajam nesses contextos para decifrar metáforas.

Ano passado RM apontou o quão impressionado ele fica com os fãs que com muita eficiência sempre estão ali estudando e analisando os vídeos do BTS. “Na verdade eu já vi algumas teorias e eu não sei quem foi, mas era um vídeo – tipo uma interpretação da história num geral – que estava realmente próximo,” ele revelou à Rolling Stone India sobre o fã misterioso que chegou muito perto de descobrir o segredo da narrativa de mais de três anos do septeto. “Eu acho que eles estão ficando muito espertos e talentosos demais!”

 

Fonte: Rolling Stone India
Trans eng-ptbr; Bia Rehm @ BTSBR

Artigos | por em 28/06/2018
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